A doença brasileira e a iminente morte da política

A doença brasileira e a iminente morte da política

Por Edkallenn Lima

“A guerra é a continuação da política por outros meios” afirmava Carl von Clausewitz, conhecido general prussiano e grande estrategista militar em seu livro Vom Kriege (“Da guerra”). O general não viveu os tempos de redes sociais polarizando a população e transformando em batalha da arena política até mesmo um minúsculo, e invisível a olho nu, vírus.

Mas, volto demais no tempo. Avancemos. Muitas linhas têm sido dedicadas à guinada das Américas (e, em parte, do mundo), na última meia década, à extrema-direita do espectro político. No Brasil, capitaneado (sem trocadilhos) pelo sentimento antipetista e anticorrupção, as esperanças de boa parte da população foram canalizadas para uma “criação”, uma “invencionice” das redes sociais, o deputado do baixo-clero, conhecido por ser “meio maluco” por seus pares, Jair Bolsonaro.

Quem o conhecia há tempos já sabia da sua incapacidade inata para o cargo em que em algum tempo depois ele seria alçado. Mas, as redes sociais, criação recente da humanidade, não existiam quando o então deputado sugeriu a tortura e o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso há mais de vinte anos. Em uma entrevista da mesma época o então (e sempre) despreparado deputado, de fala rudimentar e vocabulário limitado, se gabava de sonegar impostos (e convida os telespectadores a fazerem o mesmo), defende a ditadura e a tortura, prega o fechamento do congresso e diz que o Brasil precisava de uma guerra civil mesmo que inocentes morressem. (link: https://youtu.be/WWOWsUiddhg )

Não é de hoje, portanto, que o atual presidente gosta e convive com o caos. Na confusa mente do chefe do executivo apenas o combate, a guerra, o confronto é que representam uma arena válida de solução de querelas.O brasileiro, conhecido por sua pouca (ou nenhuma) memória, sendo um país que nunca fez as pazes com seu passado escravocrata, violento, genocida, elitista e racista, embarcou de vez no discurso fácil da extrema-direita onde todos os problemas são resolvidos “na bala” ou com uma solução simples (que sabe-se, para problemas complexos, estão quase sempre erradas) e acreditando em mamadeiras fálicas e outras fake news (que explodiram com as redes sociais, mas divago), elegeu o ex-militar expulso do exército em uma eleição histórica onde o protagonismo foi deslocado da TV e das mídias tradicionais para a Internet.

As democracias liberais, invenção também recente (mas, um pouquinho mais antigas que as redes sociais) trouxeram o debate, o colóquio parlamentar como forma de solução de conflitos e de discussão dos entraves e controvérsias da sociedade. Era uma ideia que vinha sendo gestada no mundo desde meados do século XVII, culminou com a revolução burguesa na França e a independência e constituição americana. Princípios iluministas foram adequados e assimilados, deixando, portanto, a política, a arena principal, para a solução de disputas.

E então, como consequências de conflitos anteriores, duas grandes guerras varreram o século XX matando, somadas, mais de 100 milhões de pessoas.Neste ponto, os líderes mundiais colocaram ainda mais a diplomacia e, em primeiro plano, a política e o debate político como solução de contendas. As democracias constitucionais pipocaram onde antes existiam apenas monarquias absolutistas. O poder diluído em centenas de congressistas, representantes do povo, foi ainda mais alçado à categoria de solução. Funcionou parcialmente. Nunca mais tivemos conflitos globais que, sob a sombra atômica, agora ameaçavam a existência da própria humanidade.

Chegamos, assim, no final da década de 2010 e à ascensão da extrema direita. EUA, Brasil, Espanha, Suécia, Chile, Hungria, Finlândia, Turquia, Itália, Filipinas e a lista não para de crescer. A crise capitalista do início de milênio é, claro, uma das causas, mas não a única. A sensação que parte da população tem de que a democracia não os representa só cresce. Vimos, por exemplo, no país, nas eleições que confirmaram Bolsonaro como presidente, diversos candidatos vencendo com o discurso de não fazer parte da política, condenando, marginalizando, quase criminalizando o debate político.

O problema é grave, claro. A extrema-direita (como, provavelmente a extrema-esquerda também) não enxergam “adversários” políticos, mas “inimigos”. E com inimigo, sabemos, não se dialoga, mas se executa, se mata. Sem diálogo não há como formar coalizões. Não há como avançar, não há como se discutir melhorias e propor mudanças. Cai-se na vala do discurso comum, do “eles contra nós”, do Fla-Flu político (que nem no futebol o é como na política atual, dado o respeito e trabalho mútuo que norteiam os dois times que são aliados políticos, inclusive -- mas, de novo, divago).

Sem espaço para o diálogo, destrói-se tudo o que foi construído até ontem sob o pretexto de ter sido feito pelos “inimigos” da vez (que podem ser de comunistas, a democratas ou republicanos, entre outros espectros). A ideologia toma conta das decisões. Se discute até fatos científicos comprovados. Se politiza até a vida, sob o pretexto de ser apenas uma “opinião”. Discursos antidemocráticos, anti-humanistas, racistas, elitistas, neonazistas e extremistas surgem e se alimentam do caos gestado pelos líderes desses movimentos.

O diálogo foi a ferramenta utilizada para mediar conflitos desde sempre (até mesmo conflitos mentais, como na psicanálise). Desde a ágora grega, passando pelo senado romano até as democracias modernas. Com a morte do diálogo, a política, infelizmente, morre junto. E com eles a possibilidade de apararmos as arestas com respeito, urbanidade e educação. O Brasil vive essa doença. Ela tem nome e sobrenome. E o remédio é o nosso voto.

Precisamos, urgentemente, enxergar o diferente não como inimigo, mas como cidadão. A única arma que possuímos é o diálogo, o debate, a razão. Quando se perde isso, perde-se a chance de melhorar e de crescer. Morre-se o diálogo, sabe-se, morre-se a política. E morrendo a política, os direitos e garantias morrem juntos. Os líderes que plantam a discórdia, o caos e apostam na guerra são anacrônicos e devem ser vistos como tal. O poder, de forma paradoxal, está em nossas mãos. Que o saibamos usar com sabedoria e inteligência, não com insipiência e espírito de confrontamento. Um novo futuro é possível. Que não coloquemos as próximas gerações, filhos, netos e bisnetos em risco apenas para “estar com razão” hoje.

Como diz o prolóquio: “é melhor ter paz do que ter razão”. Tenhamos paz e não guerra. Não matemos a política e com ela o diálogo.

Edkallenn Lima é servidor público federal e professor

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